É consensual e facilmente demonstrável que uma certa parte da imprensa portuguesa não esteve nos seus melhores dias quando relatou com uma regularidade rotineira que as instituições europeias (que foram todas e com vários nomes inventados a uma certa altura) teriam tomado a decisão de sancionar Portugal pelo incumprimento dos compromissos orçamentais assumidos pelo Governo PSD-CDS junto do Conselho da União Europeia. E, como hoje todos sabemos, essa multa acabou por ser definitivamente cancelada no mês passado por intervenção do atual Governo e por recomendação da Comissão Europeia.
Conforme confirmaram em Julho Valdis Dombrovskis, Vice-Presidente da Comissão Europeia para o Euro e o Diálogo Social, e Pierre Moscovici, Comissário para os Assuntos Económicos e Financeiros, Fiscalidade e União Aduaneira, o facto de o Conselho da União Europeia ter concluído oficialmente que Portugal tinha incumprido os seus compromissos e não tinha tomado ações efetivas para trazer o défice para a meta acordada para 2015, obrigaria legalmente a Comissão Europeia a abrir um processo de possível suspensão parcial de fundos comunitários para o ano de 2017. Na reunião do Colégio de Comissários de 27 de Julho, os dois comissários sublinharam esta circunstância, ressalvando contudo que a Comissão tinha decidido não tomar nenhuma decisão sobre o assunto naquele momento, decidindo só se pronunciar oficialmente mais tarde, depois de realizar um diálogo estrutural sobre a matéria com o Parlamento Europeu.
Como aliás afirmou Valdis Dombrovskis no final da mesma reunião: “Primeiro teremos que formular uma proposta formal, que faremos, como referi, depois de consultas com o Parlamento Europeu, mas só entraria em vigor, em qualquer caso, somente no princípio do próximo ano. Contudo, se os países [Portugal e Espanha] estiverem dentro do rumo das novas orientações de ajustamento fiscal, que serão agora confirmadas pelo Conselho, então, de facto, há a possibilidade de que esta suspensão seja levantada e, no final do dia, os países não perderão nenhum fundo da UE.”
O processo legal que obriga a Comissão Europeia a equacionar a hipótese de uma suspensão parcial dos fundos comunitários vem descrito e acontece no âmbito do artigo 23º do Regulamento 1303/2013. Nele também vêm descritas as diversas situações em que esta possibilidade de suspensão pode nunca se concretizar e, como própria Comissão Europeia esclareceu em Julho passado, “ao contrário do que acontece com a multa, não existe qualquer prazo juridicamente vinculativo para que a Comissão proponha a suspensão” dos fundos. E que para a suspensão de fundos não se consubstanciar bastaria a Portugal e Espanha “o pleno cumprimento do Pacto de Estabilidade e Crescimento, tal como expresso nas recomendações adotadas hoje pelo Conselho“, o que, no caso português, é consensual entre todos os intervenientes que muito provavelmente se realizará em 2016.
Ora bem, ontem, à margem da reunião do Eurogrupo, Pierre Moscovici, declarou: “Em primeiro lugar, em relação à suspensão dos fundos estruturais e de investimento [a Portugal e Espanha], eu confirmo que queremos que o diálogo estruturado previsto com o Parlamento Europeu aconteça o mais rapidamente possível. Não temos tempo a perder”. E isto, parece-me óbvio e de salutar. Todos queremos, parece-me, que todo o processo legal previsto decorra da forma mais célere possível e que não se arraste indefinidamente, para o bem de Portugal e Espanha e da União. E acima de tudo é bom que os representantes eleitos diretamente pelos cidadãos europeus possam ter uma palavra sobre a questão. Todavia, o semanário Expresso traduziu estas declarações de forma diferente, e decidiu escrever ontem uma peça com o título “Bruxelas quer acelerar suspensão dos fundos“, não revelando qualquer outra fonte que não sejam as declarações inócuas de Moscovici. Já na edição impressa de hoje, o semanário decidiu ser ainda mais simples e retirar qualquer contexto e apenas escrever isto na sua contra-capa:

(via Jugular)
Não só tal é uma flagrante distorção das declarações do comissário europeu, como é clara desinformação para os leitores, que ficam com a aparente impressão que na Comissão Europeia há um desejo carnal pela suspensão imediata e total de todos os fundos comunitários a Portugal. E, nesta altura do campeonato, depois de várias “fontes” que garantiam certeza de sanções ao jornal, o mero descuido numa alegada busca de um sensacionalismo nestas matérias já não pode ser facilmente tolerado.
Ainda para mais quando, também hoje, o Vice-Presidente da Comissão Europeia para o Emprego, Investimento e Competitividade, Jyrki Katainen, declarou o seguinte em Bratislava: “Não espero que [Portugal e Espanha] alguma vez se vejam na situação de perder fundos estruturais, pois acredito plenamente que ambos os governos querem e vão ser capazes de conseguir cumprir as suas promessas”, reforçando assim outras manifestações de confiança passadas da Comissão Europeia na capacidade do atual governo português de se distinguir do seu predecessor no cumprimento dos seus compromissos comunitários – uma imagem que infelizmente parece pouco retratada nalguns órgãos de comunicação social portugueses.
O papel da imprensa no funcionamento duma sociedade democrática e desenvolvida é fundamental. É a ela que cabe manter os cidadãos informados e escrutinar todas as entidades que possam ter algum impacto nas suas vidas. Este dever implica, todavia, uma análise rigorosa da veracidade daquilo que noticiam e das interpretações que possam fazer dos factos. Essas interpretações, no passado, roçaram em diversas vezes o carácter de pura desinformação no que a política europeia diz respeito. Já está portanto mais que na hora de alguns jornais nacionais procurarem contrariar essa tendência e serem nesta matéria, finalmente, rigorosos.